quarta-feira, janeiro 03, 2007

Prólogo - Guardiões da Existência

Derrotado pelo cansaço, Henry largou o lápis na mesa, amassou a folha em que estava escrevendo e logo em seguida jogou-se na cama, ainda usando a roupa do trabalho. Começava a se sentir velho. Faltavam menos de três meses para o seu aniversário de 44 anos, porém, alguns diziam que ele aparentava ter uns anos a mais. E, um fato que era ainda mais provocante, era o de que ele nunca havia se casado. E oportunidades não lhe faltaram. O que faltou, ninguém sabia.
Henry se concentrou em dormir. Talvez, depois de um bom sono, alguma inspiração poderia surgir. Então, depois de alguns segundos, suas pálpebras começaram a pesar. Mais um instante e ele já estaria dormindo. Pobre homem. Havia se tornado um escravo do sono e da estranha preguiça. Seus cabelos brancos e seu rosto pálido, com a barba por fazer, demonstravam alguma perturbação no interior daquela mente que se aproximava da velhice. Um pequeno cansaço que sentia e já ia direto para a cama. No trabalho, ele lutava incessantemente contra os acessos de cansaço que o invadiam. Henry só não era relaixado, isso ele nunca fora, e por esta razão manteu-se no emprego.
Naquele sono diário, porém, ele sentiu toda aquela canseira e toda a preguiça se esvaírem pouco a pouco. Foram se esvaindo, até que não restasse mais nada que fosse desnecessário dentro dele. Alguma força escondida nele percebeu que aquela era a hora.
Henry acordou depois de dormir meia hora. Um impulso espetacularmente forte o fez calçar velozmente os sapatos, descer todas a escada do prédio em que morava, sair pelo portão e observar a rua pouco movimentada. Uma velha senhora passeava com seu cachorrinho na calçada do outro lado da rua. Algumas lojas abertas, sem ninguém além dos vendedores. À esquerda e acima, havia um parque não muito bonito, mas era um lugar tranquilo, nostálgico e gostoso de ficar. Henry nunca havia ido até lá, mas todos da vizinhança diziam a ele que era um bom lugar para se sentar e escrever. Era óbvio o que ele devia fazer. Subiu as escadas correndo, voltou ao quarto, pegou um caderno velho e um lápis, um guarda-chuva, pois o céu estava ficando estranhamente escuro, e um pequeno relógio de bolso, para se dar conta da hora de voltar. Não estava frio, então achou desnecessário levar seu casaco.
Mais uma vez, desceu as escadas correndo. Sentiu uma lágrima escorregar do seu olho esquerdo. Estava, incrivelmente, muito emocionado. Alguma coisa que estava presa no inconsciente dele eo fazia ficar costantemente cansado, agora havia se libertado, começando a ter um efeito contrário.
Eis que, por um momento ele parou.
-- O que... o que houve? -- ficou meio confuso. Sentou-se em um degrau da escada lentamente, com os olhos bem abertos como se esperasse que a resposta por aquilo estar acontecendo viesse ao encontro dele por conta própria. Logo, a emoção que havia sentido há alguns segundos atrás dissipou-se, e agora um profundo sentimento de fúria dominou o seu ser. Poderia ele, ser realmente feliz se desse atenção para a liberdade? "Vou arriscar então" pensou ele.
Correu feito louco pela rua. Quem olhava pensava que ele estava atrasado para alguma coisa. E, talvez, estivesse mesmo. O parque estava a poucos metros de distância. "Espero estar fazendo a coisa certa", pensou.
Henry não era só um homem que vivia cansado, mas que também frequentemente se irritava com seus próprios pensamentos e decisões, o que era estranho, pois quando jovem, ele tinha uma incrível habilidade de harmonizar seus pensamentos. Logo, essa sua característica não havia se esvaído dele durante o sono de momentos atrás. Talvez ela fosse necessária ainda.
Na entrada do parque, Henry parou mais uma vez. Um vento gélido, porém fraco, começou a soprar. Possivelmente o sinal de que iria começar a chover. "Sinto cheiro de chuva", pensou ele. A emoção de antes, de repente voltou. Uma mulher atraente estava se dirigindo à saída do parque em que Henry se preparava para entrar. Dali onde estava, Henry podia ver um cachorro correndo atrás de um gato. No entando, a sua visão foi interrompida naquele momento.
-- Adivinha quem é? -- mãos macias e graciosas tamparam sua visão, e uma voz feminina soou no ar.
-- Droga...-- disse Henry -- você me deu um susto, Celina!
-- Ha, ha, ha! Você se assusta fácil! -- disse ela, virando-se para ficar de frente com Henry. -- Oi! -- deu-lhe um beijo no rosto. No exato momento, a mulher atraente que estava saindo do parque passou por eles. Lançou um olhar para Henry. Um olhar frio e misterioso. Logo depois seguiu caminhando rapidamente pela rua.
-- Aquela moça... -- ia dizendo Henry, mas logo parou, voltando a atenção para Celina -- E então, como vai a vida, minha cara Celina? O que faz por aqui?
Celina era uma bela mulher que devia ter por volta de 30 anos de idade e trabalhava junto com Henry num escritório de uma empresa. Ela tinha longos cabelos negros e lisos, e olhos castanho-claros. Assim como Henry, não era casada, e oportunidades não lhe faltaram também.
-- Eu, na verdade, não estou muito bem. Só quis dar um passeio pelos arredores, afinal moro perto daqui. Pensei em visitá-lo, mas o encontrei aqui. O que você tem? Pela sua cara, você deve estar pior do que eu. -- disse ela, olhando para Henry com uma feição bastante preocupada. -- Qual o problema, Henry?
Henry estava realmente estranho em sua aparência. Seus olhos estavam vermelhos e com olheiras, sua feição um tanto abatida e sua voz estava meio rouca. Aparentemente estava cansado, mas, particularmente, não estava.
-- O quê? Como assim? Eu estou muito bem. Pra dizer a verdade, tão bem como nunca estive! Pode acreditar! -- um singelo sorriso apareceu nos lábios de Henry.
Celina ficou observando-o por um tempo, com uma certa atenção. Depois virou-se e seguiu na direção da entrada do parque.
-- Vamos entrar então. -- disse ela, olhando para ele, sorrindo. Henry correu para alcançá-la e logo estava caminhando ao lado dela, através do parque.
-- Diga-me... -- dizia ele -- por quê você não estábem? Ao contrário de mim, você não aparenta estar mal.
Celina continuou caminhando ao lado dele, olhando a natureza ao seu redor, sem dar atenção às suas palavras. De repente, a visão da mulher deparou-se com uma figura incomum ali no parque. Um homem distinto de longos cabelos ruivos estava acariciando as cabeças do cachorro e do gato que antes corriam um atrás do outro, e, de súbito, cão e gato trocaram olhares e saíram correndo como dois grandes amigos, lado a lado. Mas, na verdade, o que era mesmo incomum era o fato... do homem parecer estar flutuando!
-- Henry... -- chamou ela -- olhe aquilo! -- disse ela apontando para o homem de longos cabelos ruivos.
Definitivamente, ele estava flutuando. Seus pés, descalços, estavam nitidamente fora do chão. O sobretudo branco que usava parecia estar levantado pelo ar, como se fosse uma capa.
-- O... o quê...? -- disse Henry, olhando para quela fugura meio transtornado. Foi, então, se aproximando do homem com uma cara de desentendido. Celina ia atrás dele. O homem de cabelos ruivos, porém, parecia estar se distanciando.
Silêncio.
Um clarão.
Silêncio continua. Os dois meio cegos por conta do clarão, e, por fim, uma voz alta e grave bradou:
"Uma sorte inesperada veio ao encontro de vocês hoje! Não se distraiam com nada! Estão, a partir de agora, no Prelúdio."

Fim do Prólogo.